19 de mai. de 2011

Memórias do meu hemangioma: o que não contei ao Jô - Parte 1



Tudo começou lá nos idos da guerra fria, no auge do governo militar, quando a porrada comia solta... O ano era 1970 e alguma coisa, mês de março, dia seis... nasci às 23:40h... bem na hora de ir pra balada (ou melhor, estar na balada).
Logo depois daquele processo complicado que deve ser o nascimento, passado todo o esforço da minha mãe, fui lá eu visitá-la, carregado pela enfermeira, que pergunta a ela, com toda delicadeza peculiar de algumas pessoas:
- O médico te falou que ele nasceu com um mancha no rosto?
Ao que minha mãe responde:
- Não!
Quando ela olha, toma aquele susto de quem viu fantasma, e diz:
- Meu Deus, ele caiu do berço?
- Ah, que nada, é uma coisinha simples.
E minha mãe singela diz pra enfermeira:
- Bem que ele poderia nascer de novo sem essa mancha, né?
E lá se vai o primeiro comentário preconceituoso... vindo da minha própria genitora!
Alguns dias depois, após muitas idas e vindas ao hospital, tenta-se achar o motivo pelo qual eu tinha nascido com “aquela mancha”.
Minha futura madrinha de batismo lembrou que minha mãe tinha ficado com vontade de comer melancia - mas na época,  não sei qual era a relação da melancia com a febre tifo, mas ninguém queria comer com medo da tal doença. Realmente minha mãe teve grande vontade, mas resolveu não arriscar - e minha madrinha concluiu que a profecia das vontades das gestantes tinha se cumprido!
Acho que se você perguntar para cem pessoas o que mais incomoda em ter um hemangioma, a resposta das cem será: as pessoas inconvenientes que perguntam “o que é isso que tem na sua cara, hein?”, “sua mãe ficou com vontade comer alguma coisa quando ‘tava’ grávida de você?” e coisas do tipo.
Minha infância não foi diferente: as abordagens eram sempre as mesmas, e as respostas idem!
E a peregrinação aos médicos? Coisa horrível! Cada um falava uma coisa diferente, com conclusões diferentes, mas todos eram unânimes em dizer “Nunca mexa, nunca corte, nunca opere”. Acredito que isso foi importante para nunca fazer nada arriscado, como uma operação.
A fase da escola também foi bem enriquecedora. Os apelidos carinhosos dos amigos sempre foram marcantes: televisão, mitsubishi, arara colorida, arco-íris de duas cores, mancha, chapolin colorado. Era uma graça! Hoje esses apelidos estão bem na moda: bulliyng! Mas sobrevivi muito bem a essa experiência, mesmo porque sempre fui um cara de pau.
Hoje sou budista, mas na minha infância fui criado na igreja Presbiteriana. Naquele tempo, cheguei a ficar revoltado algumas vezes com Deus, com minha família... Olhava pro espelho e dizia “Deus, se você existe, tira essa mancha do meu rosto agora”. E a ira d’Ele se voltava contra mim, na forma da surra que minha mãe dava ao ouvir  isso!
Como dizem,  a vida imita a arte (e a música): “Daí veio a adolescência e pintou a diferença...”. Então, aprendi a beber, deixei o cabelo crescer e decidi trabalhar... A ditadura já tinha acabado, a democracia começava a reinar e um dos meus primeiros trabalhos foi na campanha presidencial de 1989, por intermédio do meu amigo Valdermar Rosendo, que sempre foi um eterno candidato a qualquer coisa (até de síndico do prédio). E lá tive contato com meu primeiro emprego com registro em Carteira, no escritório de advocacia do saudoso e falecido Dr. Everaldo José Faria. Trabalhava de office-boy, mas com registro de Auxiliar de Escritório (um status para a época).
Foi lá que aprendi a andar na cidade, pegar ônibus, metrô, levar marmita e ter contato com o mundo externo, sempre levando comigo a dura realidade das perguntar inconvenientes, fosse no ônibus, metrô, fórum, filas do banco...: “O que é que você tem na cara, hein? Sua mãe ficou com vontade de comer alguma coisa quando ‘tava’ grávida de você?”.

3 comentários:

  1. Valério, fiquei muito feliz ao ver sua entrevista no Programa do Jô. Amizade é assim: apesar dos 500km de distância, torço por você e pelo trabalho da Abraphel. Parabéns!

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  2. Quando li o texto acima, passou um filme na minha cabeça: o nascimento do meu filho! Ele ainda não passou por tudo qto vc descreveu, tem apenas 3 anos...
    Parabéns pelo seu trabalho na ABRAPHEL, e tbm pelas suas entrevistas e desabafos!!! Vc é exemplo de superação e luta.....
    um abraço!!!!

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    1. Lia, as experiências de vida de quem tem algum tipo de marca de nascença, seja visível ou não, sempre são marcantes... não sei se você fará tratamento em seu filho, mas se trabalhar esse lado muito bem, não deixar que ele crie fantasmas e coisas do tipo, tenho certeza que terá uma experiência fantástica de vida no futuro. No entanto, se você me perguntasse uma sugestão sobre o fato de tirar ou não, diria que vale a pena tirar... mas isso é de cada um, de cada família. Desejo muita boa sorte à sua família e ao seu pequeno príncipe! Abraços

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